domingo, 10 de janeiro de 2016

232... Um drama que se desenrolou na Serra do Gerês


Dia de tormenta em todo o país e despertar temperano em S João do Campo. O vislumbre pela janela às 3h00 mostraram um cenário sem chuva, mas certamente frio... um frio que não se sentia no ambiente quente do quarto.

Voltei a adormecer. O despertador acordou-me às 6h00 e logo de imediato ouvi a chuva que caía lá fora. O meu pensamento foi trespassado pelas paisagens de neve que ansiava ver no topo da serra. Pouco depois, aguardava o primeiro dos meus companheiros de caminhada e enveredamos de imediato pela Geira Romana ao encontro dos restantes.

A passagem pela ponte sobre o Rio Homem mostrou-nos que este tinha o seu usual caudal de Inverno. Ali, a chuva, apesar de marcar a sua presença, não era intensa e de quando em vez lá dava algumas tréguas. Iniciamos a caminhada às 7h40.

Como é usual em dias chuva, o caminho encontrava-se com muita água. A maior parte das bermas está entupida e como tal parte do caminho torna-se um pequeno ribeiro no qual por vezes se saltita de pedra em pedra numa infrutífera tentativa de nos manter-mos secos. Como é óbvio, esta dança termina em poucos quilómetros...

A paisagem invernal do Vale do Alto Homem é feita de quedas de água, muitas delas surgindo por magia nestes dias. A Encosta do Sol em tons de cinza era pintada por rasgos brancos da água a despenhar-se das alturas. Como disse em tempos o José Moreira, "parece que a montanha se rasga para deixar sair a água".


À medida que se ia subindo tornava-se evidente que a paisagem branca de há dias atrás havia desaparecido. A passagem pela Água da Pala mostrou um Modorno topejado de nuvens, mas sem neve. Esta ia caindo de longe a longe, mas insuficiente para modificar a paisagem.

A passagem nas Curvas do Febra mostrou-nos a Água da Laje do Sino na sua máxima pujança que marcava a chegada ao Modorno local para um curto descanso e retemperar de forças numa bebida quente. Nesta altura o vento já soprava forte apertado pelas paredes alcantiladas daquela passagem. A Ribeira do Modorno ocupava todo o seu leito e fazia-se ouvir de forma estrondosa, tal como o Rio Homem o fazia desde o início.

Continuamos a jornada e voltamos a entrar no Vale do Alto Homem. Entramos na zona que foi fustigada pelo incêndio de Setembro de 2013. Este incêndio consumiu toda a vegetação existente na margem esquerda do Rio Homem deixando a nu toda a encosta. Desde então têm sido vários os pequenos deslizamentos de terra que foram tapando os velhos canteiros por onde escorria a água das chuvas em direcção ao rio. Em resultado, a água invade de forma constante o caminho e vai retirando a terra, deixando apenas a rocha solta. É neste troço entre o Modorno e a chegada à Ponte das Águas Chocas que o caminho se transforma num verdadeiro rio do qual é impossível fugir. Em alguma partes formaram-se pequenos «poços» em virtude da erosão com a água a chegar ao joelho!


Chegava o frio que agora se notava quando parávamos. Em pouco tempo passávamos as Abrótegas onde existem os primeiros sinais evidentes da velha exploração mineira. Mesmo aqui o Rio Homem mostrava já o resultado de dias seguidos de chuva... no fundo do vale as condições iam-se juntando para a tempestade perfeita.

Não demoramos muito a chegar às ruínas e desde logo procuramos o único local onde se pode abrigar numa situação destas. Trocamos de roupa e retemperamos forças com bebida e comida quente. As poucas fotografias desta crónica foram então tomadas e após este pequenos descanso enveredamos a descida. Eram 11:30.



Fotografias de Paulo Figueiredo


Era notório que as condições meteorológicas estavam piores. Nesta altura lembrava-me do quinto elemento que se havia atrasado. É certo que perdeu este dia de montanha, mas certamente não teria de passar por um regresso infernal à Portela do Homem.


Pouco depois de iniciar a descida encontramos um grupo de camaradas montanhistas que tinha o objectivo de atingir a Nevosa. Decidiram continuar a jornada após dois dedos de conversa, mas se por um lado esta decisão pode parecer estranha, terá sido aquele o momento fulcral para que os acontecimentos que se iam desenrolar horas depois não viessem a ter outro desfecho. Pouco depois, cruzamos com um outro grupo na demanda da neve. Estávamos pouco depois da Ponte das Abrótegas. Este grupo decidiu regressar à Portela do Homem. É nesta altura que passa um terceiro grupo de três elementos. Pouco depois comentávamos o facto de um deles vestir fato de treino e calças sapatilhas.

Muitas vezes um simples 'bom dia' na montanha é o suficiente para despoletar uma conversa e em resultado desta se trocar avisos, conselhos. É um bom hábito que se deve ter em montanha; infelizmente um hábito que não é partilhado por todos.


Cada vez mais as pessoas que se aventuram em actividades de montanha têm de ter a consciência que tais actividades não são passeios no jardim. E se ninguém vai passear para um jardim de calças de fato-de-treino e sapatilhas num dia de chuva, muito menos se deve ir para a montanha nestas condições num dia de forte intempérie. Certo que não terá sido esta a razão para que a situação se viesse a tornar no drama que aconteceu nas Minas dos Carris, mas caminhar na montanha é muito mais do que o relato final de uma aventura e «gostos» nas fotografias. Estas palavras não significam que sou elitista ou que tenha bom equipamento de montanha. O equipamento que tenho está gasto de dezenas de caminhadas e nesta altura já pouco me restava seco a cobrir o corpo. Mas há um outro factor que é importante: o factor psicológico e o facto de conhecermos os nossos limites. Por muito bom equipamento que tenhamos, a montanha é sempre imensamente mais forte e esta estará sempre à espera de testar os nossos limites.


Recordo que passamos por este terceiro grupo nas Abrótegas, a menos de 1 km das Minas dos Carris. No semblante daquelas três pessoas nada havia que nos indicasse que após percorrerem essa distância, um deles estivesse quase a desfalecer e a necessitar de cuidados urgentes. Os cuidados possíveis foram dados pelos três montanhistas que haviam já então tomado a sábia decisão de não tentar o cume da Nevosa e ficaram abrigados nas ruínas. Em suma, em menos de 1 km o que deveria ser um dia de aventura tornou-se na aventura que poderia ter custado uma vida!

Quanto a nós, continuamos a nossa descida. Ao chegar às Águas Chocas o segundo grupo passava por nós em correria para escapar da borrasca que ia assolando o Vale do Alto Homem. O caminho era já ele todo um rio no qual caminhávamos com cuidado de não pisar uma pedra solta ou ficarmos presos a um galho escondido. A contemplação das quedas de água fazia-nos parar aqui e ali.


Ao passar na Corga do Modorno fomos fustigados por ventos fortes e por uma queda de granizo tão intensa que em poucos segundos o chão ficava coberto de pequenas pedras de gelo. O vento era tão forte que o granizo magoava nas mãos nuas. A Ribeira do Modorno parecia possuída de tal força que tentava galgar a ponte e esventrar as margens rochosa. Por seu lado, a Água da Laje do Sino tinha uma largura nunca vista com a água arrebatada pelos ventos fortes que por ali sopravam.





Todos os cursos de água apresentavam caudais dignos de referência histórica com as Ribeiras do Cagarouço e da Água da Pala a terem volumes de água que nunca havia presenciado. Nesta altura, as águas do Rio Homem que horas antes ainda permitiam ver o leito rochoso em alguns locais, eram agora negras dos detritos que transportavam.

Chegados à Portela do Homem nada fazia indicar o que por aquela altura ocorria no topo da Serra do Gerês... As notícias iniciais davam conta de seis pessoas perdidas nas Minas dos Carris, chegando-se mesmo a referir que havia um elemento que havia caído ao rio e que se encontrava em hipotermia. A escassez de informação ou o sensacionalismo associado aos acontecimentos, não deixavam perceber o que na realidade estava a ocorrer. Tal como em muitas ocasiões, os acessos ao complexo mineiro foram o principal entrave colocado ao socorro prestado aos sinistrados. Com um apoio montado em Lagoa, os bombeiros terão caminhado cerca de 6 km até às Minas dos Carris passando pelo Couce (uma zona completamente encharcada nesta altura do ano), enveredando depois pelos Cocões do Concelinho passando anteriormente por um «pequeno» ribeiro. Aqui percorre-se carreiro pedregosos de montanha transportando equipamento de socorro. De seguida depara-se a subida do Quelhão antes de chegar aos Currais das Lamas de Homem. O nome do curral ajuda a perceber a forma como se deveria encontrar o percurso que depois os levou até à Ponte das Abrótegas, voltando então à direita e percorrendo a extensão final do antigo estradão mineiro, subindo a Corga da Carvoeirinha antes das ruínas.

Com a intempérie a intensificar-se, foi no mínimo heróico o esforço feito pelos bombeiros e outras forças de socorro para trazer os sinistrados para a Portela do Homem através daquele caminho miserável e que se tornava cada vez mais traiçoeiro à medida que cada minuto de mau tempo ia passando!


Algumas imagens do dia...





Fotografia de Paulo Figueiredo


Fotografia de Paulo Figueiredo

Fotografias © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados) excepto onde indicado

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