sábado, 15 de abril de 2017

"O Torpor da Altitude"


A transcrição do terceiro capítulo do livro "No Gerez - a Natureza e o Homem", de Sousa Costa (1934)... Foi mantida a grafia original da obra.

Nós, os citadinos, nós, os da terra baixa, o organismo afeito ao pêso das grandes pressões atmosféricas - caríatides do espêsso ar respirado e transpirado por meio mundo - subimos à montanha, onde o lar é lavado, fino e leve, e sentimo-nos deprimidos. Nos primeiros dias, nos cinco ou seis dias de crise que precedem o período de adaptação ao novo meio, falta-nos qualquer coisa indispensável aos movimentos do corpo e alma. Parece que o pêso que nos tiraram de cima, era, afinal, o dínamo da nossa precária energia. E um torpor invencível. logo traduzido em invencível sonolência, força-nos ao lânguido dormir de todo o dia e tôda a noite - na tina e no bebedouro, no pasto e no recreio dormimos até acordados.

E não há espertaína de olhos tentadores, nem sacudidela de facundo construtor de ideias, que nos libertem da túnica de Nesso.

Aqui, no Gerez, no seio dêste concílio de picos em êxtase, alguns com perto de dois mil metros de estatura, sob a acção emoliente das árvores que ciciam e das águas que cantam, águas miltiplicadas em ribeiros, em cascatas, em fontes, em repuxos, êste opressivo torpor quási nos não deixa abrir os olhos para o formidável espectáculo da Natureza: - a boca sempre aberta nos bocejos de cada instante.

Nem sequer nos deixa conversar. Assim, abeira-se de nós um dos aquistas aclimatados. Pregunta em que livro trabalhamos, que futura obra elaboramos. E não temos consciência, esta mesma vaga e incerta, senão duma obra, dum trabalho - alçamos a lassidão do braço, e sôbre a bôca escancarada, pôrto franco às investidas do Demo traiçoeiro, levantamos a cruz dos esconjuros.

Daí a pouco surge novo cliente. Êste desloca-se já à vontade, agora artilhado das várias ciências e artes de ontem e do hoje, logo blindado das inumeráveis novidades literárias do longe e do perto - o máximo das francesas, bastante das alemãs, algo das inglesas, nada das portuguesas, que não habilitam a vogar no mar alto da importância. Desdobra a Teoria da Relatividade, do Einstein. Evoca o Proust, A l'ombre des jeunes filles em fleurs.

Em menos de dois crédos emudece, porém, vira de rumo, certo de que mal dispomos de energia, não paea aguentar o fogo cerrado das suas baterias - para afugentar certa mosca homicida que brande diabólicamente o punhal de Malatesta. E o caso repete-se sob o constitucional que nos chama a terreiro contra a Ditadura. Sob o ditatorial que põe capa de ásperges ao 28 de Maio.

Isto sempre, no comedouro e no banho, ou passee-mos a meia lua elegante da Colunata - a filarmónica do repuxo e do ribeiro a afagar-nos o ouvido; ou respiremos o ar balsâmico do frondoso Parque Público - à vista da rebelde gruta de cimento armado em afrontosa pugna com os ciclópicos rochedos do contôrno.

Mas abençoado torpor! Com uma semana de repouso forçado - outra vez meninos no berço, tôda a noite e todo o dia a dormir e a sorver - renascemos para a luta sem fadiga, para a rija batalha em que melhor triunfa o que melhor canta a Marselhesa do riso.

Fotografia © Rui C. Barbosa (Todos os direitos reservados)

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